O Bonfim, no Porto, vai das Fontaínhas às Antas e foi considerado pelo The Guardian um dos 10 bairros "mais cool da Europa". O JPN percorreu algumas artérias deste “bairro” da cidade para perceber qual é a realidade da freguesia que está paredes meias com a baixa do Porto.

Na rua que dá nome à freguesia, vive-se um ambiente de “Regresso ao Futuro”. Subir a Rua do Bonfim até ao cimo da igreja com o mesmo nome é como viajar para um tempo ao qual o boom imobiliário não chegou. Os poucos edifícios requalificados coexistem com prédios devolutos e lojas fechadas.

O burburinho do comércio local faz lembrar o Bonfim da década de 1980. Do Campo 24 de Agosto à igreja do Bonfim, ainda é possível ver a oficina de carros, a tabacaria onde se compra o jornal, o restaurante típico com o prato do dia ou a mercearia onde se fazem as compras do quotidiano.

Esta autenticidade melancólica do Bonfim é vivida ainda um pouco por toda a freguesia. O velho e o novo, o antigo e o renovado vivem lado a lado, numa área geográfica tão díspar que vai das Fontaínhas às Antas.

Para o vereador do pelouro da Educação e Cidadania da Junta de Freguesia do Bonfim, Hugo Pinho, aquela zona geográfica combina o melhor de dois mundos. Ao JPN, o vereador considera que foi uma “maravilha perceber que o património foi recuperado” ao mesmo tempo que a freguesia “mantém as suas gentes”.

Hugo Pinho acredita que o turismo não é a “panaceia de todos os males.” “Isto vai ter um pico e depois disso vamos ter que arranjar soluções [quando o boom turístico acalmar] para continuar a dar a mesma utilização ou dar uma outra. Estamos a viver esse caminho de encontrar o equilíbrio que não tem sido fácil”, reitera.

O empedrado das ruas transversais ao Heroísmo mistura-se com o comércio new chic da área envolvente. Da renovada zona de Barão de Nova Sintra avista-se o Museu Militar. Uns passos em frente e o Busto da resistente anti-fascista Virgínia Moura lembra-nos um pedaço de história, que tal como o Bonfim, resiste ao tempo.

É a pensar nesse tempo que o vereador salienta a chegada das empresas tecnológicas BLIP e Natixis. Hugo Pinho caracteriza-as como rostos de uma mistura do tecido económico e social da freguesia “capazes de gerar emprego para uma população jovem”. O responsável da Junta de Freguesia considera que o Bonfim passou de “zona industrial para uma freguesia comercial e residencial, numa diversidade de atividades económicas que a dinamizam.”

A arte, seja ela sacra, arquitetónica ou decorativa, é de traço comum no quarteirão que liga o cemitério do Prado do Repouso à Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP). A diretora da instituição, Lúcia Matos, revela que “há um interesse, um envolvimento nos últimos 30 anos no interior das Belas Artes pela geografia, pelas pessoas e pelos negócios da zona envolvente”.

“Agora somos mais visitados por estrangeiros, no sentido turístico de descoberta dos nossos espaços”, aponta a diretora daquela instituição e ressalva que “os alunos internacionais, aqueles que se inscrevem num curso inteiro, esses sim têm aumentado muito”. “Mas não creio que tenha a ver com o turismo, tem que ver com uma política de alguns anos, de um esforço de internacionalização da Universidade do Porto”, refere.

O caráter irreverente das Belas Artes vive-se noutras ruas da freguesia. Lúcia Matos assinala a diversificação cultural da zona, presente “no espaço público, nas ruas, na biblioteca, nas associações, nas escolas”, misturado com “os ateliês dos artistas“. Segundo a mesma fonte, os muitos ateliês de artistas que por ali existem devem-se ao facto de haver “muitos jovens que se formam, que começam a sua carreira e que precisam de um espaço” para trabalhar.

Escolher o Bonfim para trabalhar

Foram a presença de galerias de arte e de jovens que aguçaram o apetite de André Dias, 35 anos, e de Mariana Moura, 34, a abrir um negócio no Bonfim. O casal brasileiro deixou a metrópole de São Paulo para trás e veio refugiar-se no Porto. “Queríamos mudar de vida e o facto de termos cidadania portuguesa ajudou na nossa escolha”, conta André, que é neto de avô português, natural de Viana do Castelo.

Em dezembro escreveram “Âme” e abriram uma coffee shop com esse nome na Rua Duque de Saldanha. “De todas as vezes que por aqui andamos, ficamos apaixonados pelas ruas calmas, pessoas afáveis e pela arquitetura das casas do Bonfim”, destaca Mariana.

O desejo de Mariana e André passava por abrir um negócio que fosse capaz de “servir os locais”. “Queríamos criar empatia e não estar apenas focados nos turistas”, explicam. As diferenças com São Paulo são evidentes: “aqui é possivel dizer bom dia, boa tarde a alguém e respondem-nos de volta. Em dois meses, já somos conhecidos na vizinhança e isso é muito bom”, assegura André, o novo “bonfinense”.

Inspirado pela passagem na FBAUP, Luís Cepa, de 25 anos, e mais dois colegas, Dylan Silva e Mariana Malhão, decidiram deixar para trás o Bolhão e voltaram a “casa” para a abrir a galeria “Senhora Presidenta”. O espaço colaborativo tem o objetivo de “mostrar a arte para locais e não essencialmente para turistas”, afirma Luís. “Depois da faculdade queríamos ficar por aqui”. Um espaço visitado todos os dias por turistas faz com que Luís olhe com “preocupação para a gentrificação associada ao turismo no centro do Porto”.

A diretora da FBAUP vê com preocupação a saída dos alunos daquela instituição para o mercado de trabalho. Para Lúcia Matos, é preciso ver o “impacto que o turismo e a subida de custo de vida, dos alugueres, têm para os jovens em início de carreira.” Apesar disso, a responsável fala numa contínua “regeneração de jovens artistas” saídos das Belas Artes.

Mesmo ali ao virar da esquina, a loja pop-up “Hello Bonfim” é um desses projetos. Rita Cortes-Valente apostou na ideia de juntar projetos de autores locais, baseados em artigos sustentáveis, que são promovidos semanalmente pelos próprios. Pedro Maçana, 43 anos, é um dos rostos desses projetos e acredita que o Bonfim “tem vida própria”.

O potencial da zona é para Pedro “evidente, mas ainda não é o bairro cool como o ‘Guardian’ apelida“. O proprietário da marca “Wayze” vê muitos estrangeiros, sobretudo ingleses, a viver no Bonfim – local em que o empresário portuense pondera viver. Maçana assegura que “os preços das casas já são altos, mas é possível ainda viver aqui”.

O espírito alternativo e aberto do Bonfim continua a atrair forasteiros para a freguesia. Depois de Madrid e Lisboa, Laura, de 34 anos, natural de Guadalajara, Madrid, está à frente de uma loja de roupa em segunda mão, no Porto. A jovem espanhola vê nas Belas Artes e no Centro Comercial Stop, fatores atrativos para a abertura de um negócio, numa zona que considera “central do Bonfim, mas sem o ruído do centro turístico.”

A abertura das Belas Artes ao meio envolvente está inerente aos recursos da instituição. A diretora alerta para as “fragilidades e limitações relacionadas com a idade dos edifícios, relacionadas com a sua degradação, com a necessidade de atualizar alguns espaços em função daquilo que é hoje o trabalho artístico e isso tem tudo a ver com o impacto que a marca Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto possa vir a ter”.

Em tempos parecia “uma aldeia”

As grades que separam o largo das Fontaínhas da linha de comboio não prendem a vista a José Teixeira. Natural de Mondim de Basto, o polícia reformado andou por África e por Lisboa. Vive há 33 anos na casa amarela que tantas vezes é e foi fotografada pelos turistas. O letreiro fixado pelo próprio na fachada da habitação lembra conflitos antigos de uma zona que em tempos parecia “uma aldeia”.

A luta de José Teixeira tem sido resistir às inúmeras ofertas que recebe para alugar a casa. Diz que agora existem “muitas casas para vender, alugar é difícil”. Se a saída da feira da Vandoma tirou movimento ao bairro, o morador identifica “muita clientela” nova por ali. Há estudantes de Braga, Barcelos e Santarém que veêm procurar casa às Fontaínhas. Nas conversas que José tem com a vizinhança, ouve dizer que “as rendas já são mais altas do que na Boavista“.

Uns metros acima a realidade não é muito diferente. O velho casario vive paredes meias com edifícios de traçado antigo, agora renovados. O destino das casas requalificadas parece ser o mesmo: o turismo. O empedrado da Rua de São Vítor é um bilhete postal de uma zona que luta para não se esquecer das raízes enquanto olha para o futuro.

Vão as pessoas, sobram os lugares. Aos números das portas das ilhas de S. Vítor acrescentam-se agora as letras “AL”. Tal como noutras zonas da cidade, o Alojamento Local toma conta do que anteriormente era património local.

José Castelo, de 66 anos, nasceu na ilha do Doutor no nº. 90. Tem assistido ao interesse imobiliário pela Rua de São Vítor, mas diz que esse “interesse tem sido controlado”. Em tempos diretor do Sporting Clube S. Vítor, vê na coletividade o espelho da realidade da zona. “O clube está moribundo, pouca gente vive aqui em São Vítor.”

Depois de nos contar a realidade diária do clube, José vem connosco à porta apontar as casas que ainda têm pessoas: “apesar de haver italianos a viver num prédio aí em cima, são poucas as pessoas que se fixam aqui”. Vê os turistas de passagem, numa área da cidade onde a Escola da Alegria, diz, já esteve para fechar. “São cada vez menos os miúdos”, assegura.

O turismo, seja ele de que tipo for, é inquestionável no quotidiano portuense. O risco do Bonfim e outras partes do Porto se tornarem lugares cheios de pessoas, mas vazios de “gentes” é algo a que a Junta de Freguesia do Bonfim está atenta.

A execução de alguns projetos em articulação com a Câmara Municipal do Porto e com a Domus Social, como são exemplo o exercício do direito de preferência sobre imóveis, o projeto da residência partilhada ou a criação de atividade cultural – envolvendo escolas e os habitantes – são, no entender de Hugo Pinho, fatores de “coesão social”. Esse aspeto permite “que as pessoas mais carenciadas se possam fixar na nossa freguesia“, explica.

Para Hugo Pinho, “a cidade tem que ter bonfinenses, portuenses. Senão, perde o seu encanto. Nós podemos ter o mais belo património, mas se não tivermos as nossas gentes a falar ‘à Porto’ e a ter o nosso sotaque perdemos o caráter genuíno. E isto é turismo. É património. Não é material, é imaterial”, remata.

Artigo editado por Filipa Silva.