Este ano, o Dia Mundial do Teatro não se celebra nos palcos. O surto do novo coronavírus levou ao cancelamento de espetáculos e à interrupção da atividade das companhias de todo o país.

Entre as quatro companhias ouvidas pelo JPN, o sentimento que predomina é o da incerteza, num setor duramente afetado não só pelo fecho das salas, como também das escolas. Onde a precariedade laboral abunda, o desemprego provavelmente emergirá. De uma coisa todos parecem seguros: o recurso ao vídeo e ao digital é mais uma prova de vida do que uma mudança de vida, porque “na sua essência, o teatro é de contacto direto, é de carne e osso“.

“O que é que irá acontecer?”

Tó Maia, diretor artístico do Teatro Aramá – uma pequena companhia de teatro criada no Porto em 1995 – alerta para os danos causados pelo surto: “a nossa companhia trabalha muito a itinerância por escolas. Logo que as escolas foram fechadas, parte dos espetáculos que tínhamos foram automaticamente cancelados”. Os ensaios de Oscar Wilde que decorriam estão suspensos – “não posso dizer que estão cancelados, porque logo que seja possível retomaremos os ensaios do espetáculo”, afirma confiante. Esta nova peça, e um outro texto original a ser estreado em julho, ficam por agora fora de cena e apenas no papel.

As marcas deixadas pela pandemia vão “além desta perda”, o diretor procura a resposta a uma questão que é de muitos: “o que é que irá acontecer?”. Não consegue prever quando se voltarão a levantar as cortinas depois deste intervalo. Espetáculos já não os há, foram todos cancelados, e a comemoração dos 25 anos da companhia corre risco de também ser. Por agora, fica-se apenas com “a incerteza futura de como é que isto vai ser, de quanto tempo é que isto irá durar e de como é se pode recuperar um pouco desta falência dos espetáculos”, confessa Tó Maia.

O desemprego parece iminente. Como conta o diretor da companhia, muitos atores vivem de “part-times em serviços como a restauração e a educação”, que foram dos primeiros a fechar na contenção do vírus. “Além de não haver trabalho no palco, também todo o trabalho paralelo que às vezes é feito, esses part-times, está tudo bloqueado. Ninguém está a trabalhar”, aponta. Tó Maia explica também que a companhia do Teatro Aramá não tem apoios do Estado: “nós vivemos exatamente dos espetáculos que vendemos. Portanto, logo à partida, se não estamos a vender os espetáculos não temos dinheiro a entrar”.

O Dia Mundial do Teatro, celebram-no com uma radionovela de oito episódios semanais, a passar na Rádio Portuense. Não foi planeado como uma adaptação às imposições do SARS-CoV-2, mas acabou por manter viva a companhia. “Já tínhamos gravado há bastante tempo, já no ano passado, e então é a única atividade que vai ser feita nos próximos tempos do Teatro Aramá”, explica o diretor artístico.

A transmissão online pode não estar nos planos do Teatro Aramá, mas Tó Maia reconhece as motivações dos colegas. “Eu acredito que o teatro continuará a ser uma arte viva. Portanto, acho que o que as companhias estão a fazer, legitimamente, é mostrar que continuam cá. É uma forma de resistir a este problema e dizer ‘vamos continuar’, logo que as portas se abram para a nossa liberdade podemos voltar ao palco”, reflete. 

No entanto, não prevê uma transição para os meios virtuais: nem para a sua companhia, como adaptação, nem para o teatro, como futuro. “O teatro sendo uma arte viva, eu acho muito difícil que as salas de espetáculos fechem e as pessoas fiquem em casa a ver um espetáculo na internet. Eu penso que não irá alterar muito a forma como as pessoas até aqui viveram o teatro indo às salas de espetáculos. Deixaria de ser teatro, seria uma outra coisa. Na sua essência o teatro é de contacto direto, é de carne e osso – quer no palco, quer na plateia”, conclui Tó Maia.

Como vive o Teatro sem espetáculos?

Também a Palmilha Dentada viu a sua atividade suspensa devido ao surto. Ricardo Alves, diretor artístico da companhia portuense, conta que tiveram de cancelar as temporadas que estavam em curso no café-teatro Pérola Negra. “Para além disso, temos também projetos com a Câmara Municipal do Porto e com o Teatro Nacional São João que, em princípio, vão acontecer mais lá para a frente. Isto obriga-nos a pensar no que vamos fazer no segundo semestre”, explica. Entretanto, toda a programação de abril e maio foi cancelada.

E como é que se mantém uma companhia sem espetáculos? “Não se mantém. Estamos parados”, diz Ricardo Alves. Os espetáculos que não podiam ser adiados, sendo portanto cancelados, estavam dependentes da bilheteira. “As pessoas que fazem o espetáculo perderam três meses de vida cujo dinheiro nunca recuperarão”, afirma.

Se uns acreditam que as tecnologias e as transmissões de vídeo podem compensar a falta de espetáculos, Ricardo acredita que essa não é uma solução. “O teatro não vive no vídeo, não há volta a dar”, explica, acrescentando ainda que “é outra gramática”. Para lá das questões técnicas, como os “atrasos inerentes” ou a “falta de ritmo” adjacentes às transmissões online, a questão “é maior do que o ritmo, o texto ou o movimento. É uma energia que tem de se sentir e que se tem de viver para resultar”, acrescenta. 

É sabido que grandes acontecimentos inspiram grandes obras de arte. Ricardo acredita que há de surgir quem se debruce sobre o assunto: “vai ser um bocado difícil resistir à tentação de escrever e pensar sobre isto e sobre o futuro que nos espera. Eu, sinceramente, não tenho grande vontade de falar sobre isto. Tenho mais vontade de falar do que virá para a frente”. 

Reforça a esperança de ultrapassarmos o problema rapidamente recordando ainda o momento de mudança que hoje se vive em todo o mundo, pois “todos sairemos disto transformados”.

“Uma companhia feliz” apoiada pelo Estado

José Leitão é diretor artístico da Art’Imagem, companhia de teatro do Porto com mais de 30 anos. Conta que o grupo já passou por muitos momentos complicados, mas “nada comparável a isto”

No momento em que a convivência conjunta foi interditada, estavam a entrar em palco, prestes a atuar para uma sala cheia. “Fizemos a estreia do ‘Desastre Nu’. É um texto sobre um desastre da humanidade – nem de propósito”, como explica José Leitão.

A pandemia levou à suspensão de todo o programa até maio. “Umas coisas poderão ser reagendadas, outras acabaram mesmo por cair”. Agora, todos em casa, estão ainda a tentar coordenar os próximos passos. 

Apesar da situação sem precedentes, José relembra que, felizmente, a Art’Imagem é “uma companhia feliz”: “temos um contrato com a Direção-Geral das Artes que nos está a apoiar para quatro anos. Em termos de financiamento, estamos garantidos até 2021”, esclarece. No entanto, surge neste domínio “um problema por resolver”. Para além da cerca de uma dezena de atores que têm contrato com a companhia, e cujos ordenados estão garantidos, todos os espetáculos têm “atores, técnicos e trabalhadores” que trabalham a recibos verdes. “Nós esperamos pagar aquilo que estava agendado. As pessoas tinham tudo preparado e estavam a contar com essas receitas para a sua vida. É isso que queremos, que a Direção-Geral das Artes aceite os nossos compromissos”, acrescenta.

José Leitão aponta ainda para uma relação de complementaridade entre as companhias que têm apoio e os artistas “intermitentes”- isto porque, no setor, “muita gente trabalha à peça ou ‘à empreitada’”, explica. Acrescenta ainda que “os artistas são trabalhadores, não são só artistas” e, como tal, receia que a situação possa vir a ser muito perigosa.

O futuro é ainda incerto. José não descarta a hipótese de, por ventura, as indicações dos encenadores e os próprios ensaios tenham de ser feitos através do uso das tecnologias e mesmo individualmente. “A vida é assim. Em Portugal já se fez muitos espetáculos em que os encenadores estavam fora e mandavam por carta e por telefone as suas indicações”, conclui. 

A reinvenção do teatro, ou não, no futuro

Também Pedro Aparício, diretor da companhia ACE Teatro do Bolhão, fala de uma atividade cessada – a COVID-19 “travou-a completamente”, lamenta. “Tínhamos acabado de começar a ensaiar um espetáculo em parceria com o Teatro Nacional São João, o ‘Lorenzaccio’, aliás uma estreia nacional desse texto de [Alfred] Musset. Fizemos uma semana de ensaios e parámos. Mandámos os atores embora. Ainda por cima muitos deles eram mais velhos, portanto, havia todos os receios e mais alguns, como é evidente. E parámos”, conta o diretor artístico. 

O reagendamento do espetáculo está a ser ponderado e, para Pedro Aparício, acaba por ser “o mais fácil de gerir” no meio da instabilidade que o surto epidémico deixou. O “mais complicado” é sim lidar com a suspensão de todo o trabalho comunitário da companhia com crianças: “aí, como a relação dos atores e dos criadores com o trabalho é mais difícil, acho que isso não criar problemas é complicado”, explica. No entanto, foi possível estabelecer “algumas ferramentas [virtuais] de trabalho com os miúdos, de maneira a não os desligar da relação que estavam a criar com o teatro”, acrescenta.

Estão a ser emitidos online espetáculos do património do Teatro do Bolhão. Quanto aos ensaios do “Lorenzaccio”, esses não têm mesmo uma solução virtual. “O teatro vê-se ao vivo, respira-se ao vivo. Num caso desses não me parece que seja substituível por uma versão cénica em vídeo”, conclui.

Pedro Aparício acredita que um teatro digital não comprometerá a leitura de emoções e a expressão inter-dependente – “o cinema fá-lo perfeitamente e a televisão também”. Ainda assim, não vê maneira de se fazer teatro de outra forma que não a tradicional. “Se ele se transformar num acesso videográfico deixa de ser teatro. No fundo, a essência do teatro é ver uma presença e um acontecimento ao vivo. Pode ser que se desenvolva uma outra qualquer forma, mas não aquela a que chamamos teatro”, afirma. 

A quarentena imposta pode levar os atores por caminhos individualistas como a transmissão online de leituras e monólogos, para manter a arte viva. Mas o diretor artístico anseia por dias melhores: “gostava de encarar isto como uma coisa passageira, gostava mesmo. Acho que nem sei se conseguiria reinventar-me a esse ponto”. Pedro Aparício e o teatro podem não se reinventar, mas certamente ficarão marcados pelo vírus. A crise sanitária que se vive atualmente pode vir a inspirar muitas peças no futuro, como diz o diretor. “O medo da morte, o vírus, uma coisa pandémica… estão aqui uma série de ingredientes que de certeza absoluta vão fornecer muito material de escrita teatral para as próximas décadas”, prevê.

Pedro Aparício diz ser “praticamente impossível ter perspetivas futuras muito concretas”, numa altura em que cada passo está a ser avaliado para se tentar “recriar um calendário”, tanto para o Teatro do Bolhão – a companhia profissional – como para a ACE Escola de Artes (ambos albergados pelo Palácio do Bolhão). A interrupção da arte performativa, com espetáculos cancelados e bilheteiras encerradas, está a deixar muitas companhias sem qualquer financiamento. O diretor reconhece alguma sorte com os apoios assegurados da Direção-Geral das Artes: “apesar de tudo, estamos numa situação menos dramática que grande parte dos nossos colegas”, conclui.

Artigo editado por Filipa Silva