Depois do “Presente”, o “Futuro Distante”. A tetralogia “O Nosso Desporto Preferido”, que Gonçalo Waddington estreou em 2016, com “Presente”, já tem segunda parte. A nova peça chegou esta quinta-feira ao Teatro Carlos Alberto (TeCA), no Porto. Vai estar em exibição no TeCA, até dia 28 de Maio. Para o ano, deve chegar o “Futuro Próximo” e em 2019 “Génese”.

O JPN esteve à conversa com o ator e encenador para saber mais sobre Civilizações do Tipo 3, badmington e seres humanos perfeitos.

JPN: No teatro, começou por interpretar e só depois assumiu o papel de encenador. Como é que foi esta passagem?

Gonçalo Waddington: Quando fui para a escola de teatro, uma das professoras – a Maria Duarte – atriz e criadora incentivou os alunos a criarem as suas obras. Outro dos professores, o Carlos Carranca, um poeta que estudava filosofia, também nos incentivava à criação.

Desde cedo, tentei criar os meus próprios espetáculos. Interessava-me. Depois, quando comecei a trabalhar como ator, estive muito tempo – tendo em conta o tamanho da minha carreira – apenas nesse papel. Em dado momento, senti vontade de encenar porque queria ver textos específicos em cena. Um exemplo é a primeira peça que encenei: podia ter convidado alguém, mas na altura pensei: “Porque não fazer?”

O mesmo acontece com a escrita, que aparece um pouco mais tarde – depois de encenar e interpretar –, mas vem também pela vontade de criar de raiz um texto. É o género de teatro que gosto de fazer.

No “Presente”, a primeira parte de “O Nosso Desporto Preferido”, Gonçalo foi o encenador. Agora, no “Futuro Distante”, é encenador e intérprete. Qual é a diferença?

A primeira peça que escrevi e encenei foi “Albertine – Continente Celeste”. Tinha a participação da Carla Maciel e do Tiago Rodrigues. Apesar de saber que ambos os papéis estavam em muito boas mãos foi sofredor estar de fora. Vamos reparando em certos pormenores. Ficar de fora é uma coisa que duvido que faça nas próximas peças.

Participei e todo o processo foi menos stressante e não estou a dizer que as outras tenham sido stressantes – não foram. Estando de fora, e como não gosto de apertar os calos a ninguém, sinto-me obrigado a estar mais calado.

O Nosso Desporto Preferido_Futuro Distante

Uma nova civilização com um ser humano aperfeiçoado Foto: Estelle Valente

Como é que foi o processo de criação do “Futuro Distante”? Foi semelhante ao do “Presente”?

Apesar de haver uma continuidade narrativa, porque embora a história seja no futuro reflete muito a narrativa do passado, em termos de forma e encenação, foi muito diferente.

Uma das coisas é que na primeira parte – não sei se por estar de fora – já sabia que papel queria que cada ator interpretasse. Desta vez, há mais mulheres do que homens e queria que muitas das personagens masculinas fossem interpretadas por mulheres, foi uma decisão coletiva. Quem se identifica com quem.

“O Nosso Desporto Preferido” mostra uma evolução científica que drena o Homem das coisas vãs e desnecessárias. A Humanidade torna-se absolutamente perfeita, uma utopia distópica. Esta tetralogia é um hino à imperfeição?

Hino não. As obras como o “Admirável Mundo Novo”, na qual Michel Houllebecq se inspirou para escrever as “Partículas Elementares” e a “Possibilidade de Uma Ilha”, também referências, falam de futuros distópicos em que a ciência evolui e nos tornamos uma espécie de tecnologia com tecido orgânico.

O facto de o cientista protagonista propor que deixemos qualquer contacto sexual entre nós – o que umas pessoas interpretam, e bem, como ciúmes – também tem outra motivação: o propósito científico. Somos poucos, vamos desaparecer, mas se continuarmos a reproduzir-nos vamos demorar muito mais tempo a desaparecer.

O seu objetivo era criar uma civilização com seres humanos mais evoluídos. De repente, os outros percebem: “Ah! O que tu pretendes é que nós deixemos de nos reproduzir para desaparecermos depressa.”

Deixar as fundações para uma nova civilização com um ser humano aperfeiçoado – não só fisicamente, mas também intelectualmente. E isso está plasmado à nossa frente. Vemos seres escanifobéticos que têm uma capacidade atlética e intelectual fora do comum, mas vivem a vida numa eterna melancolia porque não há ciúme, paixão, vontade de discutir, vontade sexual. Não há nada.

O Nosso Desporto Preferido_Futuro Distante

Em 2018 chega o “Futuro Próximo” e em 2019 “Génese”. Foto: Estelle Valente

Uma das grandes inspirações desta obra foi o “Admirável Mundo Novo” de Huxley – uma distopia onde a reprodução se transforma em processo tecnológico. Huxley explorou muito as potencialidades da ciência e o Gonçalo fez o mesmo. Como é que começou a interessar-se por ciência?

É curiosidade. Gosto de ler trabalhos de divulgação científica. Acompanho sites de publicações científicas e algumas pessoas no twitter e no facebook que promovem divulgação científica.

No caso de “Albertine – O Continente Celeste” falei com um professor e investigador em Oxford, Gil Ferreira, sobre o tempo porque estava a ler a obra “Em Busca do Tempo Perdido”. Queria que tivesse uma componente científica naquela palestra inicial da personagem a explicar o que é o tempo, porque é o que se passa nos sete volumes da obra do Proust.

Falar do tempo nas questões científicas obrigava não só a alguns trabalhos filosóficos mas também a trabalhos científicos de referência. No campo da astrofísica, da cosmologia, da mecânica quântica. Tive a ajuda de alguns professores do Técnico para traduzir para miúdos alguns trabalhos que já estão simplificados para os leigos.

Uma das coisas que estudei foi a questão das civilizações. Há um russo, o Kardashev, que especulava acerca de como seria a evolução das civilizações de acordo com a sua capacidade de angariar energia.

A escala de Kardashev foi cunhada por ele com três civilizações.Uma civilização do Tipo 1 já não usa combustíveis fósseis, vai buscar a energia diretamente à estrela, a de Tipo 2 é interplanetária e do tipo 3 já é intergalática, consegue drenar a energia de uma galáxia.

Pus-me a pensar: o que será uma civilização do Tipo 3? Quando se pergunta a um cientista qual é o nosso tipo de civilização respondem que somos o zero. Estamos na passagem para o tipo I, que dizem ser a mais perigosa passagem.

Uma civilização do Tipo 1 tem um meio de comunicação único comum a todos – e nós já temos a internet. Tem uma língua comum a todos – e nós já temos o inglês, em qualquer canto do mundo se fala inglês, o que não significa que as outras línguas desapareçam. A roupa é comum a todos – e já vemos as marcas – viajamos pelas capitais todas do mundo inteiro e vemos as mesmas lojas.

Temos aqueles extremistas antiglobalização e os terroristas que não querem misturas, o que é engraçado numa altura em que estamos quase a largar os combustíveis fósseis. Vem o Trump, as eleições na França que iam dando porcaria, vem o Brexit, nega-se o aquecimento global, voltamos para guerra.

Estes atrasos devem-se a pessoas como o Trump, que chegou à Casa Branca e a encheu de homens. Um homem, branco, misógino, machista – tudo o que não precisamos. Podíamos ter uma sociedade multiétnica e científica que respeitasse as religiões, mas estamos cada vez mais longe disso nos últimos anos.

E é uma Civilização de Tipo 3 que está retratada na peça?

Essa é que é a parte cómica e irónica. No final, toda a gente concorda: vamos desaparecer como espécie. Deixam a receita de um novo humano e propõem encontrar um desporto que os ajude a gastar energia e a não discutir. O badminton. Um desporto de uma civilização do Tipo 3. Acaba assim e começa a segunda parte.

Percebe-se pela métrica, rima e coro que é uma comédia, tipo Aristófanes. O futuro é ir buscar a comédia do passado. Não nos esquecermos tão depressa do passado, ajudava-nos a perceber o que se passa agora. Não esquecer as atrocidades todas, todas as guerras, os declínio das civilizações.

O “Nosso Desporto Preferido” é badminton, certo? Porquê a escolha deste desporto?

É uma das coisas que é defendida na primeira parte. Eles estão numa espécie de tempo de espera para ver um resultado da primeira experiência do neo humano. Têm que esperar para ver se aquela gestação dará resultado e o cientista teima em discutir o futuro da linguagem. A elevação em tudo o que se diz, em tudo o que se faz. É uma contradição porque ele acaba por dizer as coisas mais fora e rasca.

Há sempre esta coisa da elevação. Num grupo fechado de cientistas ou andam todos uns com os outros e criam-se tensões ou matam-se a beber até às quinhentas. Então, promove-se a cultura do desporto. Eles já experimentaram tudo: luta, remo… A uma dada altura, pensam “vamos procurar um desporto elevado”.

Um dos desportos elevados é o ténis, mas pôr ténis no palco é um bocadinho complicado. O público leva com uma bolada ou uma “raquetada”, por isso badminton.

O badminton não é só aquela coisinha leve da praia ou do jardim. É super rápido e energético. Cada ponto disputado é super desgastante, mas ao mesmo tempo é elegante e elevado. A forma bonita com que os jogadores passam a pena uns para os outros é de uma elevação absoluta, mas depois há asneirada na peça, o que é contraditório.

Badminton: o desporto de uma civilização do Tipo 3. Foto: Estelle Valente

A organização de “O Nosso Desporto Preferido” em formato de tetralogia deve-se a uma escolha artística ou é resultado de imperativos logísticos?

Inicialmente queria fazer uma peça e queria que os quatro tempos fossem na mesma peça, mas apercebi-me que ficaria uma coisa assim pesada – em termos logísticos e financeiros. Falei com os co-produtores na altura e decidi fazer por partes.

Surgiu a ideia de fazer primeiro o presente e aquilo não é o presente é um presente – um presente possível. Depois queria logo saltar para o futuro distante: o resultado das pesquisas.

A terceira parte será o futuro próximo. Os primeiros cientistas da primeira parte, já muito velhos refletem se tudo o que fizeram não terá sido em vão. Se as suas pesquisas, o tempo todo dedicado a um trabalho, não terá sido em vão.

Alguém procura alguma coisa e ao fim de um tempo pensa: “Será que isto terá sido em vão?”. E o exemplo que eu dou é o exemplo de Proust. Quando morreu tinha publicado poucas obras e depois o irmão é que teve que editar o resto dos volumes. O Proust acabou por morrer sem conhecer a verdadeira dimensão do trabalho dele.

O mesmo aconteceu com outros cientistas. O próprio Einstein percebeu que faltava qualquer coisa e achava que o trabalho dele não era importante. Agora está à altura de Newton e Galileu e não sabe. Na terceira parte desta peça aborda-se isso. É interessante pensar sobre isso.

Artigo editado por Filipa Silva